segunda-feira, 24 de maio de 2010

Despersonalização

Fernando Pessoa não é apenas o autor de uma obra original, múltipla e multifacetada, mas, principalmente, o criador de uma "pequena humanidade", constituída por figuras "exactamente humanas" com personalidade própria, como são Alberto Caeiro, Ricardo Reis ou Álvaro de Campos.
Desde muito cedo que Pessoa sentia dentro de si um rumorejar de vozes, uma dispersão interior, um pluralismo de disposições e de inclinações que o obrigavam à diversidade de uma multiexpressão intelectual e estética. Assim, o Poeta, ao sentir-se constantemente outro, ao "outrar-se", cria personalidades que exprimem estados de alma, percepções, visões do mundo, temperamentos, ideias e sentimentos específicos, distintos dos seus e, por vezes, opostos. O "eu" do artista despersonaliza-se, desdobra a própria individualidade, torna-se essência de outros e de si, para melhor exprimir a apreensão da Vida, do Ser e do Mundo. O desafio aliciante da proposta de trabalho n.º 2 é exactamente transmitir a essência de cada heterónimo utilizando a Letra como elemento de comunicação visual e de transmissão de conceitos.

Alberto Caeiro apresenta-se como um simples "guardador de rebanhos", que só se importa em ver de forma objectiva e natural a realidade, com a qual contacta a todo o momento. Em Caeiro há a inocência e o deslumbramento pela constante novidade das coisas. O poeta constrói uma doutrina orientada para a objectividade, para a contemplação dos objectos originais, para o conhecimento intuitivo da Natureza. Por isso recusa a metafísica ( afirmando mesmo que "pensar é não compreender"), o misticismo e o sentimentalismo social e individual. Caeiro constrói uma poesia das sensações, apreciando-as como boas, por serem naturais. Propõe-se a não passar do realismo sensorial, postulando que a "sensação é a única realidade para nós" e que o pensamento apenas falsifica o que os sentidos captam. Assim, numa clara oposição entre sensação e pensamento, o mundo de Caeiro é aquele que se percebe pelos sentidos e o sentido das coisas reduz-se à sua existência, forma e cor - a realidade vale por si mesma. Este heterónimo é então um sensacionista, que vive aderindo espontaneamente às coisas ("Para além da realidade imediata não há nada") e procura gozá-las com alegre e despreocupada sensualidade.
"Argonauta das sensações verdadeiras", o Poeta ensina a simplicidade e a clareza totais, o que é mais primitivo e natural. Daí que a poesia das sensações seja também uma poesia da Natureza: Caeiro afirma-se o poeta da Natureza, que ama a Natureza, vive de acordo com ela e a vê na sua constante renovação. Passeando e observando o mundo, personifica o sonho da reconcialição com o Universo, com a harmonia pagã e primitiva da Natureza.

Sou um guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.


Este excerto do poema "Guardador de Rebanhos" é perfeitamente exemplificativo da doutrina e do carácter de Alberto Caeiro, sendo um dos dois poemas utilizados na composição tipográfica relativa a este heterónimo.
Os ensinamentos de Alberto Caeiro, quer ao trazer o ser humano ao quotidiano e ao integrá-lo na simplicidade da Natureza, quer ao encarnar a essência do sensacionismo, tornam-no Mestre da outra humanidade: Pessoa hortónimo e heterónimos. Para estes, Caeiro representa um regresso às origens, ao paganismo primitivo, à sinceridade plena. Pode-se mesmo afirmar que Caeiro ensinou-lhes a filosofia de não filosofar, ao anular o pensamento metafísico.

Ricardo Reis é o poeta clássico, da serenidade epicurista, que aceita, com calma lucidez, a relatividade e a fugacidade das coisas. Na poesia de Reis, a vida é efémera e o futuro não existe. As certezas da relatividade das coisas e da fugacidade da vida levam-no a estabelecer uma filosofia de vida, de inspiração horaciana e epicurista, capaz de conduzir o homem numa existência sem inquietações nem angústia. O poeta procura uma forma de viver com o mínimo de sofrimento, mediante um esforço lúcido e disciplinado para obter uma calma qualquer. Sendo um epicurista, e portanto defendendo o prazer como caminho da felicidade, Ricardo reis advoga a procura do prazer de cada instante sabiamente gerido, com moderação e sem desprazer ou dor. Para isso, é necessário encontrar a ataraxia, a tranquilidade capaz de evitar qualquer perturbação. Reis procura um prazer relativo, uma verdadeira ilusão da felicidade por saber que tudo está traçado (Fado), tudo é transitório, tudo tem seu fim, como é demonstrado no poema "Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio", que serviu de inspiração à composição tipográfica e do qual fica um excerto.

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e nao estamos de maos enlaçadas.
(Enlacemos as maos.)
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e nao fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as maos, porque nao vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer nao gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassosegos grandes.


Nesta atitude de aceitação do destino inelutável, o poeta defende a apatia como o ideal ético, ou seja, faz a apologia da indiferença como forma de saber viver com calma e tranquilidade, abstendo-se de esforços inúteis para obter uma glória ou virtude que nada acrescentam à vida. A apatia em reis, ou indiferença céptica, traduz então um acto de lucidez de quem sabe que tudo está fatalmente traçado.

Álvaro de Campos é o heterónimo que reflecte a insubmissão e rebeldia dos movimentos vanguardistas da segunda década do século XX, olhando o mundo contemporâneo e cantando o futuro. Esta exposição, assim como a composição tipográfica, irá centrar-se na segunda fase da sua obra poética (fase futurista/sensacionista), em que o poeta se revela como o poeta vanguardista que, numa linguagem impetuosa, excessiva, canta o mundo contemporâneo, celebra o triunfo da máquina, da força mecânica e da velocidade. Campos exalta a cidade, a sociedade e a civilização modernas com os seus valores e a sua "embriaguez". Aponta a beleza dos "maquinismos em fúria" por oposição à beleza tradicionalmente concebida, ou seja, canta a raiva mecânica em contraste com o desejo de sossego e de serenidade. Tanto a Ode Triunfal como a Ode Marítima reflectem bem esta exaltação do mundo mecânico, assim como exprimem a intensidade e totalização das sensações. Com efeito, Campos é um verdadeiro sensacionista, que procura o excesso violento das sensações (à maneira da Walt Whitman), manifestando a vontade de ultrapassar os limites das próprias sensações, numa vertigem insaciável, que o leva a querer "sentir tudo de todas as maneiras" e "ser toda a gente e toda a parte". O sensacionismo de Álvaro de Campos distingue-se do de Caeiro na medida em que este considera a sensação de forma saudável e tranquila, rejeitando o pensamento, enquanto que Campos, sentindo a complexidade e a dinâmica da vida moderna, procura a totalização das sensações, conforme as sente ou pensa, o que acaba por lhe causar tensões profundas, que se reflectem na terceira fase da sua obra (fase intimista/independente).
Aqui ficam dois excertos dessa obra poética genial que é a Ode Triunfal e que serviram de inspiração à composição tipográfica.

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com o que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

(...)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro às vossas esquinas,
E ser levado da rua cheio de sangue
Sem ninguém saber quem eu sou!

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